No dia 14 de setembro de 2000, o então Governador do Rio de Janeiro, Anthony Garotinho, editou uma lei que previa que o ensino religioso deveria ser, a partir de então, obrigatório nas escolas públicas do estado. As aulas só poderiam ser ministradas por professores credenciados pela autoridade religiosa competente, e seria exigida de tais professores formação religiosa obtida em instituição por ela mantida ou reconhecida. A lei previa ainda que o conteúdo religioso seria atribuição específica das autoridades religiosas, cabendo ao estado o dever de apoiá-los. Tanto Garotinho como sua esposa, a atual Governadora Rosinha Garotinho, já demonstraram entusiasmo com a idéia de implantar o ensino da teoria criacionista como obrigatório nas escolas públicas, proposta esta que assusta diversos setores da sociedade e gera polêmica.
Segundo a teoria criacionista, o homem, assim como toda a natureza, foi trazido à existência através de um processo especial criativo e que já não vigora mais; depois que a criação foi concluída, estes processos de criação foram substituídos por processos de conservação planejados pelo criador para garantir a manutenção do sistema por ele criado. O criacionismo é praticado pela grande maioria das escolas cristãs de hoje como uma premissa básica na sua filosofia de educação. Os cristãos desejam ter liberdade para ensinar aquilo que compreendem ser a verdade científica, contestando a teoria evolucionista predominante, que prega que as espécies animais e vegetais existentes na Terra não são imutáveis, mas sofrem ao longo das gerações uma modificação gradual, que inclui a formação de raças e espécies novas.
No entanto, é necessário separar com propriedade o espaço da liberdade religiosa, que deve ser defendida de forma a afirmar a tolerância com as diferenças, do direito inalienável de cada cidadão, garantido pela Constituição, de ter acesso ao conhecimento científico. Além disso, essa mesma Constituição veda ao Estado a manutenção de relações de dependência ou aliança com cultos religiosos. Assim, é fácil perceber que a proposta idealizada por Garotinho e sua esposa fere um princípio importante da nossa Constituição que foi conquistado pela burguesia na já longínqua e extremamente penosa formação do mundo contemporâneo, que é o Estado laico. A idéia do Estado laico foi concebida pelos filósofos do Iluminismo e posta em prática pelos revolucionários da França para contrapor o Direito Divino dos reis que vigorava no Antigo Regime absolutista. Ele é um dos pilares da democracia tal como a concebemos hoje.
Apesar de todas estas conquistas, o embate travado entre a fé e a razão se estendeu por todos esses anos, e após ter se mantido vivo durante todo “o longo século XIX”, atravessou também o século XX, e findo este, na alvorada do novo século, o tema ainda é extremamente atual. Um exemplo da importância de tal contradição é a proibição do uso de símbolos religiosos nas escolas francesas. Exatamente o berço das já citadas conquistas burguesas, a França não quer vê-las caírem por terra, mas acaba saindo como autoritária e intolerante aos olhos do mundo. E no Brasil, como esta discussão está se dando? De que formas a influência da religião afeta o desenrolar da política no país?
De fato, o Brasil também é um exemplo vivo dos problemas da influência que a religião pode exercer na política. Diferentemente da França, o Brasil demorou a consolidar a laicidade de seu Estado, haja vista que ainda no século XIX existia no país a instituição do Padroado, que conferia status de funcionário público a membros da Igreja Católica Apostólica Romana – religião oficial do Império. A partir da primeira Constituição da República, até a Constituição atual, o Estado brasileiro passou a ser laico e, portanto, ficou impedido de estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos. . É curioso notar que, apesar disso, com exceção da Constituição 1937, todas as outras do período republicano fizeram referência expressa, no preâmbulo, à proteção de Deus.
Podemos citar como problemas gerados por essa forte ligação com a Igreja o fato de o divórcio só ser previsto pela lei a partir do ano de 1977. Atualmente, houve também a polêmica com a proposta de proibição do uso de crucifixos nas salas de órgãos públicos, além da controversa idéia de parlamentares fluminenses ligados à Igreja de instituir o tratamento de homossexuais – como se o homossexualismo fosse de fato uma doença. E finalmente, uma das propostas que mais tem gerado discussão atualmente: a permissão do aborto de fetos anencéfalos, autorizada pelo ministro Marcus Faver. Tal proposta teve tamanha repercussão que até mesmo o Papa João Paulo se pronunciou contrariamente. É surpreendente que tal questão ainda seja discutida com a influência da religião, o que constitui uma ameaça aos fundamentos da nossa democracia.
Deve-se, portanto, pensar a respeito da importância de levar aos jovens que estão nas escolas públicas o conhecimento dos mais recentes avanços da ciência, de forma a estimular um desenvolvimento crítico do conhecimento, ao invés da pura assimilação de dogmas religiosos. Não se trata aqui de defender com unhas e dentes a teoria evolucionista: como toda teoria científica, ela também deve ser questionada, para que não se torne um dogma científico. Trata-se sim, de impedir que uma medida inconstitucional nos remeta aos tempos do Império. Instituir o ensino do criacionismo significaria impor aos jovens praticantes de outras religiões uma teoria cristã, e mais que isso, vedar a eles o acesso ao conhecimento científico. Assim, sem dúvida, estaríamos nós, em pleno século XXI, mais próximos do ido século XIX do que nossos próprios pais.
23.11.04
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